05 julho 2015

De Valdés a Sanchez. Enfim, Sanchez


"Caro Alexis Sanchez,

Você, meu nobre, com certeza ouviu falar, mas não tem ideia de como o ano de 1973 foi doloroso ao nosso povo. Caminhávamos sob a entropia e o desvario que a Guerra Fria nos salpicava. E após cairmos no penhasco do socialismo, colidimos de vez com o chão da amargura quando fomos puxados a mera força pelos americanos ao ingresso sanguinário à Escola de Chicago.

O 11 de setembro nos doeu muito antes das duas torres. Pinochet, aquele maldito!

Você também não sabe o quanto estávamos ansiosos para a peleja com a União Soviética naquele 21 de novembro. Era importante, valia vaga na Copa de 74. E principalmente porque tentávamos buscar no futebol alguns minutos de paz e sorrisos discretos, mesmo diante daquele solo tão ensanguentado, torturado, desalmado.

Fomos enganados. Eu era um daqueles 18 mil que compraram o ticket daquela partida para chegar ao estádio e me deparar apenas com aquele espetáculo musical mequetrefe da banda militar chilena. Os soviéticos nem sequer viajaram. Tinham medo, assim como eu, aqueles 18 mil e toda a população, entre eles, seus parentes.

O jogo não existiu. Nossa seleção pisou solitária e assustada no gramado. Não esqueço o semblante de Véliz ao perceber que garantiria sua maior glória profissional no mesmo local onde dias antes centenas de conterrâneos - dentre eles, familiares e amigos - haviam sido fuzilados. 

Nosso escrete foi em direção ao gol vazio, fechando a dor com chave de tripa quando Valdés, aquele desgraçado, empurrou a pelota para a rede. Logo ele, que, mesmo sendo ídolo de meu amado Colo-Colo, jamais merecerá o perdão por apoiar aquele ditador.

Gol de Valdés. Gol de Pinochet. Gol da dor.

Gol mais triste de nossa história.

Eu paguei pra ver aquilo. E juro que me envergonho.

Fomos para a Copa e nossa atuação foi um enorme desastre, como um bom espelho do que era nosso país. 

Nosso futebol, àquela época, quando associado à causa popular, era sinônimo de tragédia. Éramos massacrados dentro e fora de campo.

Mas quando você, Sanchez, foi em direção àquela bola, eu estava atrás daquele gol e lembrei daqueles anos em que nossa pátria era associada ao sofrimento, à tortura, ao medo. Lembrei de quando este estádio se tornou um cemitério clandestino de uma ditadura. Lembrei dos amigos que perdi, das vidas que se foram, da esperança que desmaiava.

Tu trataste a redonda com tanto carinho naquele arremate, menino. Tu ajudaste a corrigir, com a bola, a alcunha que um recinto havia adquirido em tempos onde a mesma era assombrosamente tratada com tamanho desprezo.

Tu acalmaste o espírito de todos aqueles corpos enterrados naquela terra. Tu colheste o sangue ainda ali respingado e injetaste em seus olhos. Tu entendeste, junto com todos os guerreiros da armadura vermelha, o que seu chute representava para aquela gente.

Tu pegaste um desfibrilador e acordaste de vez a esperança que se encontrava em coma.

Mas é só futebol!

Mas é só futebol?

Eu vi você, Vidal, Isla, Medel, Bravo, todos ricos, com a vida feita na Europa, se emocionarem como se tivessem salvo vidas naquele fim de tarde.

Não é só futebol. Não desta vez.

Vocês não salvaram vida alguma. Mas deram sentido a muitas. 

Porque tiramos um mês para dar à nossa voz um formato esférico. Porque escolhemos o futebol para representar uma guerra e, mesmo após seu fim, vencê-la.

Porque almas que há tanto tempo subiram a partir daquele gramado, se convenceram, lá de cima, de que ali ainda há como o povo se orgulhar.

Porque a tortura, desta vez, foi de ansiedade, causada pelo entalo deste clamor em nós.

Há cerca de 42 anos, eu estava ali para assistir o nosso gol mais triste.

E neste pôr do sol, eu vi você, Sanchez, fazer o gol mais feliz de nossa história.

Obrigado por me dar a chance de ver isto enquanto vivo. 

No mesmo palco, no mesmo solo, o mesmo futebol, o novo sentimento: a vitória. Agora, a transição mais bela. 

Valeu a pena esperar.

Aos norte-americanos, que nos forçaram a sucumbir àquela ceifadora transição, mais uma semelhança histórica que, desta vez, a bola tratou de pintar: além do 11 de setembro trágico, fomos agora brindados com o 4 de julho da liberdade.

Em 2015, nosso grito de independência foi mais alto. Desenhado por uma pelota, traduzido para o castelhano.

Seus pés foram nossa garganta.

Obrigado, Sanchez."

Att.: Ramón Juanez Pereyra. 

@_LeoLealC

Foto: Marcos Brindicci/Reuters

Um comentário:

  1. E ainda dizem que o futebol é apenas um jogo... o povo chileno merece, E MUITO, a alegria de ver o futebol local campeão. MERECIDAMENTE campeão.

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